segunda-feira, 23 de julho de 2018

Nem toda pessoa que se mata tem depressão', diz especialista em suicido


   Há 24 anos, a psicóloga Karina Okajima Fukumitsu, 46, se dedica a explorar profissionalmente um tabu, o suicídio. Seu envolvimento com o tema, porém, começou na infância. Sua mãe tentou se matar inúmeras vezes. Mais tarde, foi ela quem pensou três vezes na morte como possibilidade


                               
   “Comecei a estudar psicologia para compreender e poder ajudar pessoas que passam por um sofrimento existencial e, por isso, tentam se matar”, conta. Segundo dados da Organização Mundial de Saúde (OMS), mais de 800 mil pessoas tiraram a própria vida por ano no mundo . No Brasil, acontecem, em média, 11 mil suicídios em 12 meses, de acordo com levantamento do Sistema de Informação sobre Mortalidade.


Em 2016, foram registradas no país 30 mil tentativas de mulheres e 15 mil de homens. Para Karina, os altos números refletem também tentativas de comunicação. Apesar de homens tentarem menos, eles são as maiores vítimas letais, por usarem métodos mais agressivos.


“Suicídio é a concretização da falta de sentido da vida, é o ápice de um processo de ‘morrência’. Ele costuma ser cometido por alguém que está definhando existencialmente, que deixou de acreditar em sua própria capacidade , como ser humano, de transformar a dor em amor”, explica Karina.


A psicóloga recebeu a reportagem do UOL em seu consultório, em São Paulo, onde atende de adolescentes a idosos que tentaram ou cogitam o suicídio, para desmistificar essa morte violenta.


UOL: Como começou seu envolvimento com a questão do suicídio? 


Karina Okajima Fukumitsu: Eu tinha 8 anos quando começaram as crises suicidas da minha mãe. Aos 10 anos, me lembro claramente de ir ao pronto-socorro, tentando socorrê-la das várias tentativas de se matar. Em 1989, entrei no curso de psicologia para compreender esse fenômeno, ajudar quem queria se matar e acolher quem estivesse passando por sofrimentos existenciais.




Essa foi a causa da morte da sua mãe? 
Não. A última vez que ela tentou o suicídio foi em 2005, quando me declarei como suicidologista. Eu estava grávida do meu primeiro filho, o telefone tocou e ela disse que estava pensando em se  matar novamente. A gente falava abertamente do processo de ‘morrência’ dela. Pedi que tivesse calma, porque a morte viria para todo mundo, é uma condição do ser humano. Durante a conversa, tive um aborto espontâneo e vi minha mãe 
Renascer das cinzas, dizendo que eu a tinha convencido sobre ter uma missão de vida. Foi um verdadeiro paradoxo. Coincidência ou não, ela acabou desenvolvendo a doença do ‘coração grande’, uma miocardiopatia grave. Foram 18 internações até 2013, quando ela foi vencida pela doença.


De que maneira essa experiência ajudou você a seguir adiante?
Com a história dela entendi que é possível resignificar a vida, ter alguma esperança. Em 2005, durante o lançamento do meu primeiro livro, ‘Suicídio e Gestalt-Terapia’ 
, ela ficou do meu lado. Eu dizia que ela era minha coautora e ela se apresentava dizendo: ‘Oi, eu sou a kamikaze”. Ela é a prova de que o acompanhamento cura.




Você já pensou em suicídio? 


Sim, três vezes. A primeira aos 12 anos, meu pais tinham se separado e eu estava exausta de tantas brigas. Lembro de estar na cozinha e ter tomado medicamentos da minha mãe. Eu não queria mais viver.


. Quando ela me viu, perguntou o que eu estava fazendo. Respondi: “Exatamente aquilo que você sempre faz”. Ela me fez vomitar e nada aconteceu. Mas foi o mais próximo que cheguei do ato. Nunca mais falamos sobre isso. Depois, aos 


, aos 20 anos, descobri que um namorado de longa data me traía. Pensei na possibilidade da morte, mas não agi. A terceira vez foi em 2014, quando recebi o diagnóstico equivocado de esclerose múltipla. Fiquei internada por 13 dias  parei de andar, esqueci a ordem alfabética, os números e fatos da minha vida. No ápice do meu desespero, pensei novamente em suicídio. Mas me agarrei na certeza de que a vida não é do jeito que a gente quer. Me recuperei completamente .


Suicídio é hereditário?
Não, o suicídio não corre nas veias. Só que existem modelos de repetição de enfrentamento que são prejudiciais, é o que a gente chama de “transmissão psíquica geracional familiar”. Alguns comportamentos tóxicos  da família se repetem. Se a gente não tiver plena atenção, entra num círculo vicioso. Cabe a cada um construir novas modalidades de responder às adversidades da vida.


Por que ainda é um tabu?
Porque é uma morte violenta, repentina e que confronta exatamente o sentido de instinto sobrevivência que aprendemos. É quando a pessoa começa a acreditar que a morte é mais interessante que a vida.
Às vezes, a pessoa não quer morrer, ela só quer matar uma parte dela que está causando sofrimento. Viver sem sofrer é uma utopia. Por isso, precisamos trabalhar a tolerância existencial.


Por que suicídio é visto como algo abominável?
Não temos tempo e espaço para lidar com a vulnerabilidade humana. Isso que o torna abominável. Ele escancara aquilo que mais se quer esconder, sentimentos indesejáveis, como tristeza, raiva, fraqueza. Não cabe a ninguém julgar o outro. Suicídio não é loucura, fraqueza, covardia ou coragem. O suicidologista norte-americano Edwin S. Shneidman, referência no assunto, o definiu como um ato definitivo  para um problema que deveria ser temporário.


É irresponsável defini-lo como uma escolha pessoal?
 Não. Se a gente pensar que cabe a cada um sua própria vida, o mesmo vale para a morte. Mas o ideal é que ela seja natural. Então, cada ser humano deve se apropriar e zelar pelos seus sentirmos  e pedir colo quando eles estiverem borbulhando. Costumo dizer que suicídio é uma dor sentida, mas não consentida . Criei um mantra que é: se tem vida, tem jeito.


Como você avalia o cenário brasileiro?
Infelizmente, estamos entre os dez países com as maiores taxas de suicídio do mundo. Está mais perto do que imaginamos. É muito comum conhecer alguém que se matou, só que preferimos fingir que não existe. Lamento que seja um problema de saúde pública, mas não existam planos de prevenção efetivos. O Ministério da Saúde trouxe uma possibilidade de diminuir os números até 2020. Na prática, porém, nada está sendo feito para isso .


Há poucos profissionais dedicados a isso?
 Vejo poucos profissionais treinados para acolher o sofrimento humano. Quando uma pessoa está desesperançosa, desamparada e/ou desesperada –o DDD da cartilha da psiquiatria--, precisamos  encontrar uma maneira de mostrar a ela um sentido para sua vida. Já ouvi muito médico dizendo que quem tenta o suicídio atrapalha o tempo deles.
Quando eu levava a minha mãe ao hospital, lembro das enfermeiras dizendo:
 “Dona Yoko a senhora não tem o que fazer a não ser tentar se matar? Não tem dó dessas meninas que te trazem aqui há tanto tempo? De pessoas que estão querendo viver?”. Esses comentários machucam ainda mais a pessoa que está em sofrimento.Se não houver resignificação, vai acontecer novamente. Quando há diagnóstico de transtorno mental, a reincidência acontece entre 40% e 50% dos casos .


Existem grupos de vulnerabilidade?
Sim. A comunidade LGBT, as vítimas de violência doméstica e aqueles diagnosticados com doenças mentais. Ou seja, grupos que não têm suas dores legitimadas nem espaço para expor suas vozes e se defenderem.




Quais são os sinais de alerta de quem pensa em se matar?
Isolamento, abuso de álcool e drogas, e qualquer mudança abrupta de comportamento. Há sinais indiretos também. É preciso estar atendo a quem começa a se desfazer de coisas importantes, a declarações de amor inesperadas e quando a pessoa usa expressões como “pode ser tarde”, “não vou dar mais trabalho”.
Tem ainda a “falsa calmaria”, que é o caso de quem sempre falou que ia se matar , que é o caso de quem sempre falou que ia se matar e parou de comunicar de uma hora para outra. Isso é uma pegadinha. Ela fica quieta para não ser interrompida. Prevenir é olhar para esses sinais e tentar criar espaços de diálogo.




A depressão é um fator comum aos suicidas?
Não, acho reducionismo pensar assim. Não necessariamente uma pessoa que se mata é deprimida, apesar de existirem vários casos de pessoas que tinham depressão e se mataram. Quando isso acontece, é que elas perderam o sentido de viver.


Quais são os maiores mitos sobre suicídio? O principal é achar que se vai provocar o suicídio ao perguntar diretamente para a pessoa se ela está pensando em se matar.
O suicídio é um ato de comunicação. E a pessoa, na maioria das vezes, tenta comunicar em morte o que ela gostaria de comunicar em vida. Precisamos falar abertamente sobre isso. Os sinais de alerta são pedidos de acolhimento.


E se a pessoa nos disser que quer se matar?
 Pergunte de volta como pode ajudar. É muito equivocado achar que quem tenta se matar está querendo só chamar atenção. Aliás, acho ótimo que eles chamem atenção. Prejudicial é tratar com desprezo. Se você não der atenção agora, vai se sentir culpado mais tarde por não ter atendido ao chamado de um ente querido.

O que você mais ouve de quem quer se matar?
 “Eu não vou aguentar se algo acontecer”. “Se eu fracassar, não vou suportar.” Ela começa a antecipar tudo o que ela imagina que de pior vai acontecer, porque não sabe lidar com situações de fracasso. Diante do desespero, num ato impulsivo, ela tenta o suicídio.

É um processo?
Salvo os casos de impulsividade, que acontecem em menores proporções, o comportamento suicida passa pelo pensamento, ideação, planejamento e só então chega ao ato .


É perverso buscar as motivações daqueles que tentam se matar?
Acho que é elucubração, porque não existe uma única causa para o suicídio. Mas é importante entender a fantasia da pessoa na tentativa. O que ela queria matar? O que ela queria que morresse? Já quando a morte é consumada, ela leva toda a verdade.

O que buscam os sobreviventes do suicídio?
Existem dois grupos de sobreviventes: aquele dos que tentaram, mas não tiveram a morte consumada, e os enlutados pela morte de alguém próximo.
Os dois buscam a mesma coisa, um acolhimento . O problema é que ainda existe um forte julgamento, quem tentou ou se matou é visto como louco. Não quero normalizar o suicídio, quero deixar claro que disfuncionalidade acontece com todo mundo .


Procurar culpados é um caminho positivo?
De jeito nenhum. Como diz o filósofo Jean-Paul Sartre, “nós somos aquilo que nós fazemos com o que o outro faz da gente”. E esse foi um dos grandes problemas da série “13 Reasons Why”. A A personagem principal fica culpando os outros por suas escolhas erradas e em nenhum momento exercitou a capacidade de enfrentamento. Mais grave ainda foi mostrar a maneira como ela se matou. Isso é grave.


Onde buscar ajuda?
Não existe uma única fórmula. Vale procurar desde alguém próximo, até especialistas. O Centro de Valorização à Vida é um ótimo caminho. O que digo sempre para as pessoas em sofrimento é: acredita que você merece  receber amor e ajuda.


O quão pesado é lidar com a morte tão de perto?
Acho que a gente lida muito mal com aquilo que é mais nosso. A única certeza que temos é a de que morreremos. Precisamos falar mais sobre isso. Ela faz parte do nosso desenvolvimento Só que, no intervalo entre nascer e morrer naturalmente, precisamos aprender a viver com qualidade.


Retirado do link :






                                

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