O
filme mostra como sete famílias diferentes lidam com o autismo. "Não
existe no mundo um autista igual ao outro", defende a cineasta Mariana
Pamplona
Feche os olhos e imagine: como é uma pessoa com
autismo? Mesmo que você não conheça ninguém com a condição, consegue defini-la
em algumas palavras? Será que você pensou em isolamento, quietude,
incomunicabilidade, frieza? Afinal, o autismo tem feições, comportamentos e
gestos específicos? Tem um rosto, um trejeito, uma cor própria? O autismo tem
só um jeito de ser?
É possível que muito daquilo que a maior parte das
pessoas pensa sobre esse transtorno seja pautado por uma série de ideias social
e culturalmente construídos que nem sempre condizem com a realidade.
A palavra
“espectro”, que acompanha a nominação oficial da
condição cunhada Organização Mundial de Saúde (TEA – Transtorno do
Espectro Autista), dá a pista: o autismo se dá de muitas formas, e se manifesta
de maneiras muito distintas de um indivíduo para o outro, por isso é tão
complexo e sensível retratá-lo.
Foi para ajudar a desconstruir estereótipos que só
reforçam o preconceito e mostrar que o espectro autista configura todo um
universo a ser descoberto, respeitado e incluído na sociedade, que os cineastas
Flavio Frederico e Mariana Pamplona realizaram o documentário “Em um mundo
interior.
o Lunetas conta
sobre o processo de criação do filme, que é o primeiro longa-metragem
brasileiro estritamente sobre autismo.
Uma condição,
múltiplos retratos
Os realizadores definem o filme como um “mosaico de
histórias”, conectadas pelo diagnóstico do autismo, e tendo como ponto comum a
perspectiva da inclusão e uma única certeza: cada sujeito com autismo é, sim,
diferente do outro. Não por acaso, a canção que faz trilha sonora para a
abertura do longa é “O quereres”, de Caetano Veloso: “onde queres descanso,
sou desejo“. A questão do “eu queria que meu filho que…” permeia todo o
filme, e remete diretamente ao chamado “luto do filho idealizado” que muitas
vezes acontece depois do diagnóstico .
A provocação que
fica é: por que idealizamos as crianças – típicas ou atípicas -, se
cada uma vai desenvolver sua própria subjetividade? Uma reflexão que se estende
não só para pais de crianças com deficiências, transtornos ou limitações
específicas, mas para a sociedade em geral.
Ao todo, o filme apresenta a história de sete famílias
de diferentes classes sociais e regiões do país, que compartilham com o
espectador a rotina de Enzo, Julia, Roberto, Igor, Isabela, Mathias e Eric,
crianças e adolescentes cujas idades variam entre três e 18 anos.
“A
ideia é mostrar como uma pessoa com autismo pode, sim, levar uma vida social
normal – trabalhar, estudar, se relacionar – mas que também há dificuldades que
não devem ser ignoradas”
Ou seja, não se trata de uma romantização da
condição, e sim de uma proposta de diálogo aprofundado que parte do cotidiano
real das famílias.
Com isso, o
documentário levanta uma questão ainda maior: como cada família lida com
as expectativas e frustrações diante do diagnóstico, do tratamento e dos
resultados – ou falta deles?
Para isso, alguns cuidados foram tomados, que se
refletem na sensibilidade de algumas escolhas. Uma delas foi ideia da
distribuidora, a de escolher o vlogger Marcos Petry – autor do
canal Diário de um
Autista, para ser consultor durante o processo de pré-lançamento do
filme.
Outro diferencial do filme é proporcionar o
protagonismo do sujeito autista durante o processo de filmagem, que resulta em
um retrato ainda mais fiel ao que acontece dentro de cada pessoa que lida
com a diferença em uma sociedade tão marcada pelo desejo de normatização. Para
isso, os cineastas entregaram câmeras nas mãos dos personagens, incluindo as
crianças.
Saiba mais sobre o documentário na entrevista
abaixo:
- Lunetas:
De onde veio o desejo de se debruçar sobre a temática do autismo?
Mariana Pamplona – “A
ideia de fazer esse filme nasceu de um desejo antigo, de fazer um documentário
sobre crianças que tivessem algum tipo de dificuldade. Ou seja, crianças que
não tivessem uma vida fácil e que tivessem que superar obstáculos pra conseguir
estar no mundo.
O tema do
autismo apareceu durante estas pesquisas. O autismo não tem cura, não tem
causas definidas. Existem apenas hipóteses, algumas mais aceitas, outras menos.
“Não
existe no mundo um autista igual ao outro”
“O espectro do autismo é muito amplo, ou seja,
existem graus muito diferentes do transtorno. Claro que existem algumas
características em comum, mas cada autista é um ser humano completamente único.
“As
pessoas de um modo geral não sabem o que é o autismo e muito menos como lidar
com ele”
Flavio Frederico – “Eu
e Mariana tínhamos acabado de lançar o longa ‘Em busca de Iara’, e estávamos
pensando qual seria o nosso próximo documentário. Foi quando a Mariana veio com
a ideia de fazer um filme com crianças. Pensei: “que ótimo! Até que enfim um
filme leve…”. Mas logo ela me falou: “na verdade crianças com algum tipo de
dificuldade”. Sempre gostei de fazer filmes que possam de alguma forma
contribuir pra um mundo melhor.
Então, ela começou a pesquisar possibilidades e
logo se deparou com o autismo. Nos debruçamos sobre textos, livros e filmes, e
logo percebemos a riqueza desse tema – e ao mesmo tempo a urgência de se
falar sobre ele. No Brasil e no mundo, pesquisas tentam decifrar o autismo ao
mesmo tempo em que legislações inclusivas são criadas ou modificadas. Como a
ideia inicial era retratar crianças no filme, logo partimos para a proposta de
tentar se aproximar do universo interior dessas crianças tão especiais.
- Lunetas:
Quais os aspectos mais marcantes e os principais desafios ao longo dessa
imersão?
Flavio – Queríamos
fazer um documentário sobre pessoas, e por isso um dos momentos mais
importantes foi a pesquisa dos personagens, o casting. Queríamos
crianças de diferentes gêneros, idades, classes sociais, de algumas cidades
brasileiras e com diferentes graus do transtorno, para realmente compor um
micro panorama desse universo.
Esse processo é bastante demorado e difícil, porque
a maioria dos pais não queria expor seus filhos. Aos poucos, fomos encontrando
esses personagens e nos apaixonando por essas crianças tão únicas.
Nessa escolha, tínhamos uma única certeza: todas as
crianças precisariam estar de alguma forma em um contexto de melhora.
Queríamos que o filme ao mesmo tempo fizesse um retrato realista e próximo das
crianças autistas brasileiras, mas que seu recorte fosse afetuoso, que
transmitisse esperança e, principalmente, ajudasse na inclusão dessas crianças
na sociedade. Acredito que todo esse processo de escolha dos sete personagens
deva ter durado cerca de dois anos.
Mariana – Uma coisa muito marcante e surpreendente
foi o quanto essas crianças se envolveram com a equipe durante as filmagens.
Existe um estereótipo de que os autistas são frios. Mas durante todo esse processo
pude perceber que de frios eles não têm nada. Mesmo o Betinho, que tem um grau
de comprometimento bastante severo, acabou se relacionando do jeito dele com a
gente.
“Uma coisa que me impressionou muito foi descobrir
a força que os pais dessas crianças têm”
Todos os dias eles acordam e têm uma maratona
física e emocional para cumprir. A disposição dessas pessoas e também dos
especialistas que fazem as diversas terapias é uma coisa que impressiona muito.
E quando uma criança autista consegue superar uma barreira é a coisa mais
linda!
Um dos principais desafios foi o de atrapalhar o
mínimo possível o cotidiano e a vida daquelas famílias. É claro que a gente
sempre atrapalha um pouco, mas tentamos deixar as crianças o mais à vontade
possível. Nossa equipe era pequena e bastante silenciosa.
- Lunetas:
Como avaliam a experiência de entregar câmeras às crianças durante o
processo do filme?
Flavio – A ideia de
entregar as câmeras às crianças surgiu ainda no roteiro. O título “Em um
mundo interior” exprime o desejo que tínhamos de tentar entrar, nem que
fosse tangencialmente, nesse mundo dos personagens. Uma das formas que
queríamos tentar essa aproximação era utilizar o material produzido por essas
crianças.
Então surgiu a ideia de dar uma câmera para cada
criança. Desde o princípio, fomos alertados por especialistas que, muito
provavelmente, poucos deles realmente filmariam de verdade. Mas, no decorrer do
processo, percebemos a enorme responsabilidade que tínhamos, ao fazer o
primeiro longa-metragem brasileiro sobre autismo, especialmente no contexto
atual, em que diversas correntes antagônicas se debruçam sobre o tema
Logo entendemos que teríamos que abrir mão de
possíveis experiências mais sensoriais, que ocupariam um longo espaço no filme,
para que ele tivesse uma característica um pouco mais didática, afinal, o tema
é bastante desconhecido da grande maioria das pessoas.
Apesar disso tudo, continuamos investindo nas
câmeras dando uma para cada um dos personagens, acreditando que os poucos
momentos que surgissem seria muito especiais. E foi o que de fato ocorreu,
especialmente com a Júlia, que fez um uso muito interessante da câmera,
gerando, na minha opinião, um dos momentos mais poéticos do filme. Assim como
Igor, que naturalmente já tem uma aptidão com objetos eletroeletrônicos.
Mariana – A gente já
esperava o que de fato aconteceu: algumas crianças usaram as câmeras e outras
não. Algumas adoraram o objeto, outras o ignoraram completamente. Os vídeos
entram de forma natural, quando estamos na casa ou em algum lugar do cotidiano
da criança e ela, por alguma razão decidiu registrar alguma coisa durante o
processo de filmagem.
- Lunetas:
Que cuidados nortearam o processo? Que caminhos decidiram evitar?
Flavio – A ideia
sempre foi utilizar uma abordagem extremamente respeitosa e sem um viés
pré-definido de abordagem do conteúdo. Nos preocupamos em ouvir as diferentes
correntes que lidam com a desordem neurológica, com diferentes abordagens, mas
ao mesmo tempo estabelecemos um critério extremamente seletivo de quais seriam
os especialistas que participariam do filme. Estabelecemos que eles precisariam
necessariamente estar ligados aos personagens, que já tivessem feito algum tipo
de atividade regular com eles.
Da mesma forma, nos preocupamos em respeitar o
espaço dessas crianças. Fizemos questão de conhecer essas crianças antes da
filmagem. Queríamos conhecê-las melhor, entendê-las, ser respeitados por elas.
Que de alguma forma tivéssemos sido convidados a entrar em suas vidas, durante
alguns dias. Mesmo no dia da filmagem orientamos toda a equipe a agir de forma
delicada, respeitosa. Na verdade, toda a equipe já foi escolhida pensando em
pessoas que naturalmente teriam um bom relacionamento com as crianças.
O próprio equipamento de filmagem escolhido também
foi pensado para incomodar o mínimo possível os personagens e a dinâmica
natural dos ambientes retratados. Utilizamos pequenas câmeras DSL R, que
poderiam chegar extremamente próximas dos personagens sem causar estranhamento.
Chegamos a emprestar essas câmeras para eles. No processo de montagem,
procuramos também respeitar os pontos de vista, alguns momentos especiais e,
principalmente, evitar caminhos fáceis de sentimentalismos, que poderiam
quebrar essa sutileza que acabou sendo reconhecida pela crítica.
Mariana – Certamente,
o caminho a ser evitado foi o da pieguice, do sentimentalismo barato que tenta
a qualquer custo tirar lágrimas do espectador.
“A
gente tentou fazer uma abordagem que não esconde a dor e as dificuldades das
famílias, mas que ao mesmo tempo mostre sempre um contexto de melhora, de
alegria, de positividade”
Apesar de todas as dificuldades, cada uma destas
crianças está evoluindo e melhorando. Estas crianças e estas famílias são muito
fortes! Muito mais fortes do que eu imaginei quando comecei o trabalho.
- Lunetas: Segundo a Organização
Mundial de Saúde, no Brasil, cerca de 2 milhões de pessoas apresentam
algum grau do transtorno e ele segue considerado uma das mais enigmáticas
desordens neurológicas. Diante desse cenário, qual a contribuição e o legado
de “Em um mundo interior”?
Flavio – Acredito
que o filme pode cumprir um papel muito importante para ampliar a discussão do
tema na sociedade, e para ajudar na inclusão de crianças com o transtorno do
espectro autista na sociedade. Espero que seja apenas o primeiro de uma série
de filmes e outras produções culturais que possam ajudar a incluir os
indivíduos autistas.
Mariana – A
gente espera poder colaborar para que a sociedade se aproxime um pouco mais do
tema, e entenda um pouco melhor o que é o autismo e como ele pode ser tratado.
“Quanto
mais aprendermos a incluir o diferente, mais justa e democrática a nossa
sociedade vai se tornar”
Assista ao trailer do filme:
Retirado
do link :
Nenhum comentário:
Postar um comentário