A gente se acostuma a viver quando dá tempo. E, cada vez mais, a gente quase nunca tem tempo
A gente se acostuma a ficar no escritório até tarde. A perder duas horas no trânsito. A ficar uma hora parada na Marginal. A se espremer no espacinho de metrô e ainda a ficar feliz por ter conseguido entrar.
A gente se acostuma a dormir pouco. A cochilar de exaustão no
meio dos filmes. A passar corretivo para disfarçar as olheiras. A tomar
vitamina para substituir as verduras que não dá tempo de cozinhar.
A gente se acostuma a ler menos porque não encontra tempo. A gravar áudios ao invés de ligar. A
filmar ao invés de curtir o momento. A fazer selfie por qualquer
razão.
A gente se acostuma a pagar 500 mil por apartamento que vale
200. A aceitar o preço do aluguel. A viver em 40 metros quadrados. A achar
normal o valor do estacionamento.
A gente se acostuma a responder e-mail do trabalho fora do
horário de expediente. A achar que não gostar do emprego é normal. A odiar a
segunda-feira e contar os dias para a sexta. Nem que seja apenas para dormir e
fazer maratona no Netflix durante o final de semana.
A gente
se acostuma a ter urgência de tudo. A sentir-se obrigado a responder na hora. A
ficar bravo com quem visualiza e não responde no mesmo minuto.
A gente se acostuma a desconfiar de quem se aproxima de repente.
De quem puxa papo sem razão. De quem é solícito demais. A gente se acostuma a
não dar abertura: para amigos novos, relações novas, trabalhos novos,
oportunidades novas.
A gente se acostuma a ter pressa. A se irritar com quem anda
devagar. A ter uma vontade incontrolável de ultrapassar.
A gente se acostuma com amigos mais ou menos. A ouvir demais e a
falar de menos. A se doar sem receber. A rir mesmo sem achar graça.
A gente se acostuma a ter opinião sobre tudo. A criticar sem
saber direito sobre o que está falando. A julgar o tempo todo. A condenar sem
pensar em quem está do outro lado.
A gente se acostuma a brigar no Facebook. A xingar no Twitter. A
se exibir no Instagram. A achar normal os comentários dos haters.
A gente se acostuma a levantar bandeiras e a bloquear quem
discorda delas. A gente se acostuma a
ter preguiça do debate. Talvez porque as pessoas se acostumaram a agredir ao
invés de debater.
A gente se acostuma a olhar sites de viagens sem comprar a
passagem. A ler críticas gastronômicas sem ir ao tal restaurante. A sonhar e
nunca realizar: aquela viagem, a mudança de emprego, a vida em outro país.
A gente se acostuma a não ter mais primeiras vezes: a primeira vez aprendendo um instrumento
novo, a primeira vez em um lugar diferente, a primeira vez em um curso que a
gente sempre quis fazer e sempre adiou.
A gente se acostuma até a comprar constantemente a mesma bolacha
no supermercado, a frequentar o mesmo restaurante, a fazer o mesmo caminho para
o trabalho. A gente se acostuma a
confundir preferência com hábito.
A gente se acostuma a se amarrar na rotina. A esquecer a
sensação boa do arrepio, da surpresa, da descoberta, do acaso.
A gente se acostuma a viver quando dá tempo. E, cada vez mais, a
gente quase nunca tem tempo. A gente se acostuma, mas não devia.
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