Esse sentimento é tão
importante porque alerta sobre algo que não vai bem. E não só no físico mas
também no emocional
Um plantão de 24 horas num final de semana em um pronto-socorro municipal é garantia de fortes emoções. Estudante de medicina, eu participava desse treinamento com satisfação, pois era certeza de bons a prendizados, além das tais emoções. Os acadêmicos eram responsáveis pela recepção dos pacientes, pela triagem e encaminhamento aos médicos e por realizar tratamentos padronizados, como suturas,
além de atender mulheres com fortes enxaquecas, homens com dores no peito, crianças com asma, e até bêbados que mal se aguentavam em pé, entre outros trabalhos. E havia também os casos curiosos, como o pescador que engoliu um peixe enquanto nadava no rio e este ficou entalado em sua garganta, mexendo-se freneticamente.
Ou o
garoto que enfiou uma ervilha no ouvido e não contou para ninguém até surgir
uma inflamação. Independentemente da especialidade que seguiriam depois, os professores recomendavam aos alunos que não
perdessem a oportunidade dessa formação em medicina de urgência. Trabalhar em
um pronto-so corro requer, além de conhecimento técnico, velocidade de reação,
espírito de equipe, resistência física e um bom estômago.
Das experiências que
colecionei, muitas me marcaram. Mas uma em particular me ensinou muito mais do
que medicina. Foi uma lição de vida. Era o cair da tarde de um sábado frio em
Curitiba, daqueles que combinam com pinhão na brasa e vinho quente com gemada.
Eu estava com colegas na
calçada em frente à porta de recepção, para onde são encaminhadas as
emergências, quando de um carro desceu apressado um casal com um garoto
embrulhado em um cobertor. O menino parecia bem. Já o casal estava bastante
alterado.
Eu e um colega os atendemos enquanto um
terceiro ia buscar uma maca de rodas. “Ele
se queimou, se queimou...”, dizia o pai. Quando lhe perguntei onde era a
queimadura, ele apontou as nádegas, dizendo que o menino havia se sentado sobre
a chapa quente de um fogão a lenha. Esse tipo de fogão é comum nas cidades
frias do Sul, e, com frequência, serve para aquecer a casa, não só para
cozinhar. Empurrando a maca, eu e meus colegas nos olhávamos com
algum espanto; não pela reação dos pais em desespero, mas pela calma do garoto,
que não parecia demonstrar nenhuma dor.
Quando perguntei seu nome, ele
reagiu como se estivesse se divertindo com todo aquele agito. Ficamos
tranquilos, achando que havia um exagero histérico por parte dos pais.
Mas a impressão se desfez
quando colocamos o menino na maca de exame e tiramos os panos que o envolviam.
A queimadura era séria, muito séria. A tal ponto de não ousarmos tratá-la sem
chamar um dos professores de plantão.
O garoto acabou sendo levado
para o centro cirúrgico, pois havia tecido morto a remover, infecção a evitar,
e era evidente que depois ele precisaria de um transplante de pele. Ele tinha
uma queimadura de terceiro grau nos glúteos e em uma boa parte das coxas
posteriores.
Qualquer um estaria gritando ou desfalecido. Como podia ele
estar calmo, como se nada sentisse? Depois de mandá-lo para o centro cirúrgico,
o professor nos chamou para conversar. “O que vocês acabaram de
ver é um caso raro de Síndrome de Riley-Day.” Como nenhum de nós
tinha ouvido falar de tal síndrome, ele nos explicou tratar-se de uma anomalia
genética rara; nela, o portador tem uma desordem neurológica que afeta os
neurônios sensoriais. “Ele não sente dor, e essa é sua desgraça”,
filosofou.
Eu nunca tinha pensado dessa forma. Jamais me
ocorrera que não sentir dor poderia ser uma desgraça. Sempre achei que isso era
bom. O professor colocou o fato na perspectiva correta. Aquele menino sentou
sobre uma chapa quente e não tinha como sentir a dor salvadora que faria com
que ele imediatamente saísse daquela fonte de calor intenso. A consequência foi
uma lesão que marcaria seu corpo para sempre. Definitivamente, a dor é uma bênção.
Não senti-la é uma maldição.
Nunca mais soube daquele
pacientezinho curitibano. Torço para que ele tenha encontrado uma maneira de
conviver com sua síndrome e que tenha levado uma vida razoavelmente normal. Mas
nunca me esqueci dele, e costumo me lembrar daquele sábado em situações
em que a dor me acomete, principalmente quando essa dor não é física.
Quando o que dói é a alma.
Assim como a dor física funciona como um alerta e provoca uma
reação imediata, as dores emocionais, como a angústia, a tristeza, a raiva,
também servem para nos dizer que algo não vai bem, e que temos que sair de cima
da chapa quente.
A pergunta é: por que demoramos mais para reagir às dores
psicológicas? Em uma ocasião, levei meses para perceber que uma ansiedade
imensa que me preenchia o peito tinha causa conhecida e bem sabida: uma relação
daquelas bem destrutivas, recheadas de ciúmes, desconfianças, discussões sem
fim. Só eu parecia não saber.
Na verdade eu me negava a
reconhecer que aquele sofrimento todo não justificava os possíveis bons
momentos. A relação era desastrosa e não era possível continuar assim. Nada
contra a pessoa. O problema era a relação em si. Em geral, as chapas quentes
das dores emocionais são as relações. E não estou falando só de relações entre
casais. Também entram nessa lista as relações entre colegas no trabalho,
entre amigos do grupo, parentes e o que tem maior potencial de causar uma dor
que não é detectada: o trabalho.
O número de pessoas frustradas
com seu trabalho ou sua profissão não é pequeno, o que nos leva a perguntar por
que elas não mudam de atividade, ou de local de trabalho. Será que não percebem
que é dali que vem a causa de sua infelicidade? Será que acham que a vida é
assim mesmo?
Que as coisas vão melhorar, basta ter paciência? A tal síndrome
da falta de dor me ensinou que não podemos fingir que a dor não existe, que ela
é um alarme, e que, se ela é natural, não precisa ser normal.
Devemos combatê-la. Mas cuidado: analgésicos ajudam, porém são
remédios sintomáticos, não eliminam as causas. Às vezes é preciso ir mais
fundo, pesquisar com coragem, não negar as evidências, cortar, purgar, extrair,
e também se permitir chorar um pouco.
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