Humildade em nada tem a ver com aquilo que é menor
Essa virtude nos ajuda a enxergar com lucidez aquilo que somos sem
arrogância e comparações
Ela é constantemente associada
a submissão, pobreza e até inferioridade. Aí,
entender a humildade como uma virtude que nos aproxima de nós mesmos não parece
um trabalho fácil. Mergulhar nessa descoberta, no entanto, pode nos trazer um
aprendizado profundo sobre quem somos de verdade. E não apenas em relação às
nossas fraquezas e dificuldades mas também sobre o nosso valor.
Momentos de tragédias, como a
lama que invadiu a região de Mariana, em Minas Gerais, após o rompimento da
barragem da mineradora Samarco, ou até mesmo os atentados a Paris, no final do
ano passado, parecem nos fazer despertar para a humildade enquanto fragilidade
da vida. “Só percebemos nossa impotência nesses momentos porque o choque nos
reconecta com a realidade e dá a dimensão de nosso tamanho.
Na maior parte do tempo, vivemos a ilusão de
termos o poder absoluto”, diz o xeique Muhammad Ragip, representante da
Ordem Sufi Halveti Jerrahi no Brasil, escola do islamismo que busca o
conhecimento e a humildade como orientação da conduta.
No cotidiano, uma pessoa humilde é vista de forma equivocada
como quem se humilha ou acata tudo o que os outros falam. Mas ela passa longe
disso: humildade é sinônimo de distinção, gentileza, simplicidade e
principalmente de autoconhecimento. “Não significa perder a dignidade pessoal,
mas valorizar o próprio esforço sem se comparar aos outros”, diz Ragip. Com
frequência, essa qualidade também é confundida com o hábito de subestimar a si
mesmo, um vício tão prejudicial quanto a arrogância. Essa falsa modéstia
acontece quando fingimos ignorar o nosso valor, funcionando até como tática
para receber mais elogios. Outra faceta de uma humildade forjada é o
autodesprezo, quando sinceramente desvalorizamos o que é nosso não porque somos
humildes, mas porque no fundo comparamos excessivamente nossos atributos e
façanhas com os dos outros.
Segundo Ragip, o valioso é
buscar o equilíbrio: “Todos temos qualidades e pontos fracos, mas não podemos
nos fechar e perder a consciência do Universo”. O conhecimento e a aceitação de seus próprios limites é o principal
instrumento a favor dos humildes. Buda
dizia: “De que servem cabelo e manto impecáveis se tudo dentro de ti está
confuso e no entanto penteias a superfície?”
Autoridade máxima do budismo
tibetano, o dalai lama Tenzin Gyatso costuma dizer que é “um simples monge
budista, nem mais nem menos”. Para o
psicólogo paulista Roberto Rosas, a dificuldade em praticar a humildade reside
na nossa cultura narcisista, que privilegia o egoísmo e a performance. Vivemos
cada vez mais em função do sucesso, da riqueza, da diferenciação social. Dessa
forma, acredita Rosas, “é mais fácil tomar antidepressivo a encarar a
insegurança e rever o orgulho”.
Segundo ele, crises pessoais,
financeiras, mortes e doenças podem ser momentos de aprendizagem e reflexão. E não é vergonha admitir o erro e
perguntar: como é possível melhorar? “Quando olhamos para nós mesmos e
enxergamos nossas falhas, temos a chance de crescer e desenvolver a virtude da
modéstia”, afirma o xeique Ragip.
Instrumento
de mudança
A falta
de humildade é um sintoma de que algo precisa ser mexido no interior de cada um
de nós. Segundo o filósofo francês André Comte-Sponville, da Universidade Paris
I e autor do livro Pequeno Tratado das Grandes Virtudes (Martins Fontes), “a grandeza dos humildes é ir ao fundo de
sua pequenez, expostos sem máscara ao amor e à luz”. O tema, aliás, já foi
bastante abordado na filosofia.
O
também francês Blaise Pascal (16231662) dizia que o homem perdeu o contato com
Deus e disfarça uma segurança que não tem. Outro francês, René Descartes
(1596-1650), escreveu que “os mais generosos costumam ser os mais humildes” e,
para Santo Agostinho (354-430), “onde está a humildade também está a caridade”.
Parece que esse valor tem a ver com olhar para o outro de igual para igual, não
na comparação ou na superioridade, e sim no sentimento de reconhecer que cada
um de nós tem a sua própria jornada, e todos somos humanos.
O curioso é que essa qualidade pode ser até
uma parceira na conquista dos nossos objetivos. Embora pareça fragilidade ou
inferioridade, ela na verdade fortalece nossa autoestima. Traz o poder de
confortar, ajudando-nos a nos sentir bem inclusive com o que temos e com aquilo
que somos, sem comparações.
Mas não
funciona forjar a humildade. Quem afirma com toda a certeza “sou muito humilde”
está se contradizendo. Dizer “falta-me humildade” se torna o primeiro passo em
direção à virtude. A modéstia é tão modesta que geralmente duvida de si
mesma. E a humildade não se subestima: é justa e nítida com suas forças e suas
limitações.
Virtude
da medida
O
professor e teólogo Edmundo Pelizari, da Associação Palas Athena, de São Paulo,
soube tirar do dia a dia profissional algumas lições sobre humildade e orgulho:
“Temos sempre os dois lados convivendo
dentro da gente, mas devemos saber a diferença entre baixar a cabeça e ser
humilde e ter uma postura firme sem ser arrogante”, diz ele.
Certa
vez, o professor mandou um aluno “calar a boca”, pois ele não parava de
conversar durante uma aula. Imediatamente o estudante e a classe reclamaram.
“Se fosse outra época, ia apenas ser autoritário com a turma, mas precisei
exercitar a humildade e admitir que havia outros modos de chamar a atenção sem
perder o respeito, como dizer para ele se retirar da classe se não estava
interessado no assunto”, diz. “Admiti o erro, pedi para ele se comportar nas
próximas aulas, e funcionou muito mais do que tentar conseguir as coisas no
grito.
”
Muitas vezes ressaltamos a arrogância para nos sentirmos invencíveis. A
verdadeira sabedoria, contudo, segue o lado oposto, e trabalhar a humildade
pode ser o caminho para chegar a ela. Como diz a escritora Clarice Lispector, “o orgulho é coisa infantil em que se cai
como se cai em gulodice. Só que o orgulho tem a enorme desvantagem de ser um
erro grave, faz perder muito tempo”. E também muita energia.
Um
aprendizado pela frente
Os
antigos gregos respeitavam e temiam Nêmesis, a deusa da Justiça, porque
acreditavam que ela punia duramente os que praticassem a arrogância, a chamada
húbris. Os arrogantes recebiam castigos terríveis porque estariam desafiando os
limites impostos pelos deuses à humanidade.
Não
havia atenuações para os que desejavam demais. Esse é apenas um dos fatos
interessantes relatados da História da Arrogância (Axis Mundi), do psicólogo
italiano Luigi Zoja.
Resultado
de oito anos de pesquisas, a obra discute a incontrolável necessidade humana de
querer sempre mais sem considerar as consequências disso. Os excessos da civilização
ocidental, com os problemas ambientais cada vez mais agravados e a exploração
desenfreada de nosso planeta são atualmente bastante discutidos, mas apenas no
aspecto técnico. Ainda nos falta levar em conta o efeito nocivo que isso
promove na alma. Somente dessa maneira é que vamos conseguir nos afastar da
ilusão e nos aproximar de verdade do universo. “É uma perfeição absoluta, e
como que divina, saber desfrutar honestamente de seu próprio ser”, escreveu o
filósofo francês Michel de Montaigne (1533-1592).
“Procuramos
outros atributos por não sabermos utilizar corretamente os nossos, e saímos de
nós mesmos por não sabermos o que em nós se passa. No entanto, pouco adianta subir em pernas de pau, pois mesmo em pernas
de pau ainda teremos de caminhar com nossos próprios pés.” Assim, de nada tem a
ver a humildade com parecer inferior. Mas com se conhecer integralmente.
É
claro que nenhuma pessoa se conhece na sua totalidade, de maneira perfeita. E
tudo bem, pois faz parte da modéstia identificar a não perfeição – caso
contrário, isso teria mais a ver com a tal arrogância. Assim, a humildade é
também uma forma de honestidade e lucidez, sem autoenganos.
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