Uma lição
de Amor e generosidade
Em Berlim, um só apartamento reúne memórias dos mais dramáticos êxodos na Europa.As cenas da massa que chegou à Europa por mar e atravessou suas fronteiras em trens lotados, a pé por trilhos e campos, dormindo ao relento, no último ano, compõem o retrato do maior êxodo no continente desde a Segunda Guerra Mundial.
Essas duas pontas da História se encontraram agora no universo
privado de um apartamento espaçoso no coração de Berlim. Ali vivem o médico
judeu alemão Chaim Jellinek, a mulher dele, Kyra, três dos quatro filhos do
casal e, desde novembro, o jovem muçulmano Kinan, refugiado sírio que a família
acolheu em casa.
Jellinek e Kyra, como Kinan hoje, tiveram suas vidas profundamente
afetadas pela guerra, embora de maneiras bem distintas. A família de Kyra sobreviveu ao Holocausto no Gueto de Budapeste. Já o
marido, Jellinek, nasceu e cresceu em uma família nazista, filho e neto de
integrantes do Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães, de Adolf
Hitler. O pai lutou na União Soviética, na operação militar considerada a maior
da Alemanha na Segunda Guerra.
Jellinek se converteu ao judaísmo e adotou novo nome quando a
mulher engravidou do primeiro filho, após um longo período de revisão do
próprio passado e identidade.
Eu perdi minha família muito tempo antes de conhecer Kyra.
Chegamos a um ponto em que meu pai achava que eu deveria defender o nacional
socialismo. Ele nunca falou sobre a
máquina industrial de matar pessoas montada por Hitler, não o ouvi defender o
extermínio de judeus, este não era um assunto em casa. Mas assim que passei a
pensar por mim mesmo, comecei a indagar sobre o que sua geração e a do meu avô
fizeram. E entendi que meu avô era, sim, um criminoso.
Jellinek rompeu com a família e saiu de casa aos 20 anos. Quando
conheceu Kyra, uma década depois, ele tocava em uma banda punk e tinha se
tornado um ativista antifascismo “sem nenhum pensamento religioso”. A gravidez
do primeiro filho trouxe de volta fantasmas do passado.
— Eu
comecei a pensar no significado da família e no que gostaria de deixar para os
filhos — diz
Foi então que decidiu se converter à religião dela.
— Porque
o maior símbolo do judaísmo é a família — diz. — Essa decisão não teve nada a
ver com meu passado, foi puramente religiosa.
Ele reencontrou o pai apenas uma vez, quando este estava morrendo.
— Mas já
não havia mais nenhuma conexão entre nós. Nada — conta, acrescentando que ao
olhar para trás, hoje, julga-o também como vítima da guerra.
— Ele foi abusado psicologicamente e teve sua
juventude roubada pelo meu avô e pelos nazistas.
FUGA
DA CONVOCAÇÃO MILITAR
Foi para escapar do serviço militar que o sírio Kinan, de 28 anos,
que trabalhava como farmacêutico em Damasco, decidiu arriscar-se pelo longo
caminho até o refúgio na Europa. Ele deixou Damasco após ser convocado a se
alistar no Exército do presidente Bashar al-Assad. Kinan prefere não dar o
sobrenome, por temer represálias contra os dois irmãos mais novos e a irmã, que
continuam na Síria; os pais morreram.
— Na mesma noite da convocação, eu fugi. Atravessei a fronteira
por terra para o Líbano. De lá, fui para Turquia. Depois, você já sabe — diz.
Em novembro, Kinan, muçulmano, chegou ao abrigo de emergência para
refugiados vizinho ao colégio judaico onde os filhos de Jellinek estudam.
— Houve um momento em que
não havia mais lugar para receber todo mundo. Então, mobilizamos a escola em um
mutirão. Os alunos, judeus, fabricaram camas para refugiados muçulmanos
dormirem em um local do outro lado da rua disponibilizado por uma organização
cristã — conta Jellinek, rindo.
Mais de
400 refugiados foram transferidos para o hospital Evangelische Elisabeth, em
Mitte. O mutirão também produziu um guia, em nove idiomas — como árabe, farsi e
russo — para ajudar sírios, afegãos, chechenos e outros a vencer a burocracia
alemã.
Quando o filho mais velho saiu de casa para cursar a universidade,
Jellinek e a mulher convidaram Kinan para morar com eles.
— No verão do ano passado, líamos nos jornais que a Alemanha
estava sendo invadida. A linguagem não era a de que havia pessoas fugindo de
uma guerra, mas pedintes de asilo superpopulando os serviços alemães.
Isso me fez perceber que o pensamento do meu pai e avô sobrevivera.
Então, nos demos conta de que precisávamos fazer algo — diz. — E, se defendemos
a integração de refugiados, nada mais natural do que começar em casa. Tínhamos
um quarto vazio, afinal.
No
início, Kinan estranhou, mas em duas semanas se sentia em casa.
— Ficamos
muito surpresos, porque num período muito curto parecia que o Kinan sempre
esteve com a gente — concorda Jellinek.
Ele
lembra que o Holocausto não é ensinado nas escolas da Síria, e Kinan confessa
que conhecia pouco sobre o nazismo e os judeus.
— O que
eu sei é que a guerra criou uma divisão, que antes não existia, entre curdos,
sunitas, xiitas, cristãos, e este é o problema da Síria hoje — diz. — Para mim,
todos deveriam viver juntos e em paz, não importa sua etnia ou religião.
Kinan aprendeu a cozinhar no refúgio e ajuda a família a preparar
o jantar para o shabat. Como faz todos os dias, junta-se a Jellinek, Kyra,
Rosa, de 18 anos, Joshy, de 12, e Lili, de 8, em torno da mesa.
As crianças tentam ajudar Kinan no aprendizado no alemão. Quando
pergunto se existe alguma diferença entre eles, todos são rápidos em responder:
— A língua!
A família frequenta uma sinagoga reformista em Berlim.
— Existem 12 mil judeus na cidade, com visões tão variadas quanto
toda a sociedade — diz Jellinek. — Se por um lado muitos estão se engajando
para colaborar com os refugiados, a direita conservadora populista está usando
isso para aterrorizar as pessoas.
O governo, ao mesmo tempo em que prometeu
abrir as fronteiras, está selecionando os que quer receber aqui: jovens e
graduados.
Os outros, que não tiveram oportunidade, mas precisam de refúgio
estão largados à espera de uma definição. Esse senso de “utilidade” atribuído a
seres humanos, essa pergunta que hoje muitos alemães fazem, “em que essas
pessoas podem nos ser úteis?”, é uma questão que vem do nazismo.
Retirado
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