A esmagadora maioria
das crianças e adolescentes portugueses está online três a
quatro horas por dia e, quando não está, muitas vezes sente-se aborrecido por isso
Relacionam-se online com pessoas que não conhecem
na vida real
e mais de metade encontrou-se com esses «estranhos»
cara a cara.
E gostou.
Para falar destes e de outros resultados do mais recente
estudo da rede EU Kids Online, entrevistámos a
responsável
portuguesa pelo mesmo, Cristina Ponte,
investigadora e professora
universitária do Departamento de Ciências da
Comunicação da
Faculdade de
Ciências Sociais e Humanas, da Universidade Nova
de Lisboa.
Como é a relação das crianças e adolescentes com a internet,
Como é a relação das crianças e adolescentes com a internet,
nas palavras
dos próprios?
Responder a
esta pergunta (e a muitas outras que cabem nesta) é
o objetivo da Rede EU Kids Online que, para isso, e
para perceber
a evolução, faz estudos periodicamente, desde 2010,
em diversos
países da
União Europeia. Portugal participou em 2010, 2014 e 2018.
Os resultados nacionais do último já estão
disponíveis, os europeus
(o estudo
está a ser realizado em 19 países) serão divulgados no
final do
ano.
Na Conferência “Crianças e Jovens
Portugueses
no Contexto Digital”, será apresentado o mais recente
estudo nacional da rede EU Kids Online, que teve a
sua primeira
edição em 2010.
Quais são as grandes diferenças?Em 2010, o panorama
era
Marcado pelos computadores, os smartphones eram
raros. O objetivo
do estudo europeu – em 25 países, entre eles
Portugal – era perceber
riscos do
uso da internet pelas crianças – pornografia, sexting,
bullying e encontros com estranhos que conheceram
online –, qual
era a sua
dimensão e como é que elas os reportavam.
Esse estudo levou a conclusões importantes, por exemplo, que os
riscos nem sempre levam a situações que as crianças
consideram
danosas.
Conhecer pessoas novas na internet era visto como uma
oportunidade
e não como um risco. O ciberbullying era o que mais
incomodava e a pornografia era reportada pelos mais
novos como
perturbadora.
O estudo teve um grande impacto e inclusive influenciou políticas
O estudo teve um grande impacto e inclusive influenciou políticas
europeias no
sentido de não olhar só para os riscos, mas também
para as
oportunidades, porque as duas coisas são indissociáveis –
quanto mais se usa, mais riscos se corre, mas
também mais
oportunidades são criadas.
87% das crianças e jovens deste estudo usam o smartphone todos
os dias ou
quase para aceder à internet.
E em 2018, que mudanças verificaram?A primeira grande mudança
é a maneira como se acede à internet, que passou a
fazer-se de
forma
esmagadora através do smartphone, o que permite um uso
frequente,
todos os dias, a toda a hora. 87% das crianças e jovens
deste estudo usam-no todos os dias ou quase para
aceder à internet,
ou seja o acesso passou a ser muito mais
instantâneo.
É como se o smartphone fosse uma extensão do próprio corpo.Sim.
E estão constantemente a receber informação, o que
torna mais difícil
a vigilância ou o acompanhamento dos pais. O
tablet, que também é
um meio novo, tem importância entre os mais novos,
mas rapidamente
a perde na
pré-adolescência e na adolescência.
Portanto, o smartphone tornou-se hegemónico e isto reflete-se nas
atividades
online, verificando-se uma intensificação de tudo
relativamente a 2010.
Dizem passar cerca de três (os mais novos) a quatro
horas
(os mais velhos) online por dia e, nesse tempo,
ouvem música,
veem vídeos (cerca de 80%) e comunicam com amigos e
familiares
e estão nas
redes sociais (cerca de 75 %).
Procurar notícias, que ficou em oitavo lugar entre as atividades
realizadas
online, subiu muito relativamente aos estudos anteriores
e isso deve-se claramente ao acesso mais simples
(através de
smartphone e
das aplicações, é muito mais fácil e intuitivo).
Também as próprias crianças e adolescentes vivem hoje em lares
com muito
mais tecnologia. E os pais também estão sempre
agarrados ao telemóvel, nas redes sociais, etc… Em
2010 e em
2014, não
havia esta dimensão tão intensa do digital.
Um pouco mais de metade dos jovens portugueses afirmam que é fácil verificar se a informação que encontram online é verdadeira. Não estarão a ser otimistas?
O uso mais intenso leva a que crianças e adolescentes estejam
mais preparados para gerir a utilização que fazem
da internet e das
redes
sociais, vão ganhando literacia digital, ou pelo contrário estão
mais
expostos aos riscos?
Eles acham que sabem (os resultados
deste estudo baseiam-se num inquérito a crianças e
adolescentes,
dos 9 aos 17 anos, portanto trata-se da opinião
deles).
O interessante será que todos – os próprios jovens, os pais, os
O interessante será que todos – os próprios jovens, os pais, os
professores… – olhem para estes números e tentem
perceber até
que ponto espelham a realidade.
Por exemplo, eles dizem que é muito fácil escolher as palavras
chave para fazer pesquisas na internet mas não
estarão a ser muito
otimistas?
Assim como quando dizem – pouco mais de metade –
que é fácil
verificar se a informação que encontram online é
verdadeira
São, portanto, dados para ler com cautela?São sobretudo um
São, portanto, dados para ler com cautela?São sobretudo um
ponto de
partida para refletir e eventualmente mudar as práticas
familiares
neste campo. Uma das coisas de que as crianças e os
jovens se
queixam – e a grande maioria afirma que os ambientes
familiares
são bons – é de que são pouco ouvidos pela família.
Se calhar, este pode ser um ponto de partida para uma conversa
sobre a internet em que a família discuta estas
questões. As
competências informacionais (saber distinguir
credibilidade da
informação,
dentro e fora da internet) são as que colocam mais
abaixo e são
tão importantes para lidarem com a avalanche de
informação.
Os pais (e a escola também) podem ajudá-los nisto.
[O aumento da exposição a conteúdos negativos] não significa
que eles os procurem.
Muitos referem que imagens reais de
grande violência
contra os mais fracos (crianças, pessoas com
deficiência, animais) ou conteúdos que
discriminam pessoas
pela cor da pele ou orientação sexual os
incomodam muito.
Em relação a 2014, a exposição a conteúdos desadequados
cresceu
exponencialmente: sites com mensagens sobre formas
de automutilação (de 6% para 45%); com
conteúdos
discriminatórios (de 8% para 43%); com
informação sobre formas
de cometer suicídio(de 3% para 29%), entre
outros.
Isto é sintoma de quê? Comparando
com os outros resultados do estudo, diria que
são dados
preocupantes em que
sentido?Esses valores elevados ilustram a
diversidade de
conteúdos negativos que circulam na internet,
muitos
deles estão ligados ao extremismo e discurso
de ódio que têm
vindo a crescer
tirando partido das redes e das conexões digitais,
onde tudo está ligado.
Não quer dizer que todos os jovens os procuram deliberadamente,
por exemplo muitos referem que imagens reais de
grande violência
contra os
mais fracos (crianças, pessoas com deficiência, animais) ou
conteúdos
que discriminam pessoas pela cor da pele ou orientação
sexual os
incomodam muito.
Os valores elevados destes conteúdos negativos são um alerta
para que estes temas sejam também mais conversados
e que os
jovens sejam
mais ouvidos sobre a sua experiência digital, e como
conseguem
construir a sua resiliência a esses conteúdos negativos e
mesmo gerar
outros discursos.
A campanha recente do Conselho da Europa contra o Discurso de
Ódio, que
também decorreu em Portugal, assentava precisamente
no protagonismo dos jovens como agentes de
intervenção.
São as tais competências sociais, informacionais e criativas assentes
em direitos humanos que temos também de trabalhar
cada vez mais,
em casa, na escola, nos espaços informais, com eles
e escutando-os
também mais.
Eles gostam de estar face a face, muitas vezes não têm é
Eles gostam de estar face a face, muitas vezes não têm é
oportunidade
para o fazer, a escola é onde estão mais.
Vários estudos nos últimos tempos têm alertado para o risco de
este uso
intensivo da internet e da comunicação virtual ou mediada
levar a uma diminuição da capacidade de desenvolver
empatia.Essa
é outra questão importante e tem que ver com as
competências
sociais que devem ser trabalhadas em relação ao
digital. Neste
estudo, notámos que eles gostam mais do contacto
face a face e
dizem que as suas relações com os amigos são mais
face a face
do que virtuais – o que contraria a ideia de uma
maioria de contactos
mediados.
Eles gostam de estar face a face, muitas vezes não têm é
oportunidade para o fazer, a escola é onde estão
mais. Temos feito
outros
estudos de natureza mais qualitativa e, em relação às
questões do
comportamento, nas tais competências sociais para
o digital
que devem ser trabalhadas, a empatia é fundamental, o
ser capaz de se colocar no lugar do outro.
Para lidar com a agressão, como o ciberbullying há programas
que recorrem
a atividades de role play, um faz de vítima, outro faz
de agressor, outro faz de testemunha, para perceber
com se sente
quando está nessa posição, mesmo que na vida real
nunca
tenha passado por isso. Uma das conclusões que
identificámos
logo em 2010 foi que muitos dos que são vítimas de
ciberbullying
também são (ou tornam-se) agressores. É preciso
trabalhar muitas
competências – informacionais, sociais, criativas e
para isso temos
que desconstruir o mito dos nativos digitais.
Muitas crianças afirmam que gostariam que os pais acompanhassem
mais o que
elas fazem.
Desconstruir o mito dos nativos digitais? Não o são?Não, não são
Desconstruir o mito dos nativos digitais? Não o são?Não, não são
nem nativos
digitais nem são ignorantes digitais, nem nascem
ensinados e sabem tudo da internet e das novas
tecnologias nem
são uns
coitadinhos desprotegidos num ambiente que só tem riscos.
Eles têm o direito a viver com os recursos do seu tempo e nós, pais,
educadores,
sociedade, temos o dever de trabalhar com eles
competências que desenvolvam literacias digitais:
não só a
tecnológica,
que essa até dominam com facilidade, mas as
competências sociais, emocionais, a capacidade de
perceber o ponto
de vista do outro e como reagirá, a capacidade de
criar, mas também
conseguir
lidar com as críticas, positivas ou negativas, e com a
frustração
que vem daí, porque isso faz parte da vida, o ter a noção
de até onde
se quer expor, porque não somos obrigados a expor
toda a nossa vida online.
Ou seja, há um conjunto de competências sociais muito importantes
para tirar
partido dos recursos do digital, que são imensos. Muitas
crianças gostariam
que os pais acompanhassem mais o que elas
fazem.
O sharenting [partilha, pelos pais, de fotos ou informações sobre os
O sharenting [partilha, pelos pais, de fotos ou informações sobre os
filhos nas redes sociais] é um risco sobre o qual
questionaram
pela primeira vez crianças e
adolescentes e eles revelaram-se
incomodados, não
foi?Quisemos perceber como é que uma
prática
cada vez mais corrente
– a de os pais exporem nas redes sociais
a
vida familiar sem autorização das crianças e
dos adolescentes –
vai contra o direito que estes têm à sua
privacidade e a serem
ouvidos nessa opção.
Metade daqueles cujos pais publicaram coisas sobre eles
(comentários, fotografias, vídeos) sem o seu
consentimento
ficaram
aborrecidos com isso e pediram aos pais para
eles tirarem
esses
conteúdos. Alguns chegaram a receber comentários
negativos
ou
ofensivos de colegas por causa de coisas
publicadas pelos
pais sobre eles.
Mais uma questão para pôr os pais a pensar?Sim.
Os pais devem pensar que isto fica para sempre e
que não é
só o ciclo de amigos que vai ver. Pensar antes de
publicar. E
depois envolver a criança ou adolescente para saber
se se
importa ou não. É uma questão de direitos.
Essa é uma questão que queremos relevar: o direito a viver
este espaço digital com a garantia da proteção, do
acesso e
da participação. Eles têm direito a participar e a
definir como é
que os outros lhes fazem referência.
É uma questão de direitos das crianças?
Sim, esta questão dos direitos digitais das
crianças tem vindo a ser
destacada pela UNICEF. Na continuação do nosso
trabalho na rede
EU Kids
Online, a UNICEF criou e apoia a rede Global Kids Online e
que assenta
nesta perspetiva dos direitos digitais das crianças: o
direito a ter proteção – existirem ambientes
adequados, que tenham
botões onde possam reportar abuso, por exemplo –, o
direito a
conteúdos adequados à sua idade e o direito a
participar, a ter voz.
Estes são os Direitos da Convenção: proteção,
provisão, participação.
Como se
garantem estes direitos? Com o empenho da indústria, dos
responsáveis
por políticas de inclusão, para que as crianças também
possam ter
mais literacia digital.
As crianças passam demasiado tempo nos ecrãs, e os pais? As
crianças
sentem-se aborrecidas quando não estão ligadas. E os pais?
É preciso
desconstruir a ideia de que as crianças vivem num mundo
que não tem
nada que ver com o dos adultos.
Mas para isso seria preciso que os adultos, pais e professores,
também tivessem literacia (muitas vezes não
têm)?Sim. Por isso
é que estamos a fazer o lançamento deste estudo.
Gostaríamos
que servisse para pôr as pessoas a pensar. As
crianças dão-nos este
retrato. Por exemplo, as questões do tempo: as
crianças passam
demasiado tempo nos ecrãs, e os pais? As crianças
sentem-se
aborrecidas quando não estão ligadas. E os pais? Ou
seja,
desconstruir essa ideia de que as crianças vivem
num mundo que
não tem nada que ver com o mundo dos adultos.
Hoje, nos países desenvolvidos não há ninguém que
não tenha um
telemóvel e
não esteja sempre a olhar para ele. Se calhar, é tempo
de refletir
sobre como estamos a educar os nossos filhos.
As raparigas passam mais à ação do que os rapazes quando se
sentem incomodadas. Isto deve-se a uma maior
maturidade ou a
uma
vigilância por parte dos pais que é maior em relação a elas
do que a eles?Há diferenças de géneros curiosas.
Elas dão sempre
respostas
mais baixas do que eles no reconhecimento das suas
competências. Eles são mais confiantes. Mas
depois, quando
vamos ver o
que fazem em situação de risco, elas agem mais do
que eles, reportando o problema ou bloqueando a
pessoa.
Pode ser porque estão mais expostas a situações de incómodo,
mas também é
verdade que, de acordo com o estudo, elas falam
mais com os
pais e os pais preocupam-se mais com a mediação
das filhas
do que dos filhos. Será que a maneira como acompanho
a atividade do meu filho rapaz é diferente, deixo-o
mais à vontade?
É
uma pergunta que os pais podem fazer-se.
Uma das maiores preocupações dos pais é a exposição a conteúdos
Uma das maiores preocupações dos pais é a exposição a conteúdos
sexuais.
Aumentou a exposição e aumentaram, sobretudo rapazes,
os que dizem não se importar ou até gostar. Quais
são os maiores
riscos?Neste
estudo introduzimos uma nova pergunta: o que sentiram
nas
situações consideradas de risco? O bullying é a situação que
mais
incomoda.
Mas quando vamos para as imagens sexuais, que é uma coisa
que os adultos em Portugal têm muita dificuldade em
aceitar que os
filhos
vejam, o que encontramos é um número muito alto dos que
ficaram contentes, sobretudo entre os rapazes
adolescentes.
Faz parte da exploração da sexualidade e muitas vezes não têm
Faz parte da exploração da sexualidade e muitas vezes não têm
outro espaço para a ter. Isto desconstrói a ideia
de que os jovens
ficam muito
incomodados ao ver imagens de sexo. Contudo, os
pequeninos dizem ficar incomodados e é preciso os
tais mecanismos
de proteção.
E os encontros com pessoas que só conheciam online – também
cresceram.
Isto apesar das campanhas feitas, dos avisos dos pais,
das aulas de cidadania…As campanhas têm também de
ouvir os
jovens para
terem como base a sua experiência.
O que vemos é que
esses
encontros cara a cara com pessoas que conheceram na
internet são na esmagadora maioria com «amigos de
amigos», com
pessoas com quem partilham interesses e daí quase
oitenta por cento
nos dizer que ficaram contentes com esses
encontros. Como os
pais também
faziam na sua adolescência, com a criação de novos
amigos.
Não quer dizer que não se deva falar dos perigos de falsas
identidades,
mas em vez do «não vás» certificar que o jovem
está capacitado para lidar com a situação e que
sabe que tem a
confiança
dos pais, não precisando de lhes mentir. Um ambiente de
mais comunicação familiar é também o que este
estudo aponta como
desejo dos mais novos.
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