segunda-feira, 3 de junho de 2019

O CIBERBULLYING É A SITUAÇÃO QUE MAIS INCOMODA OS MIÚDOS NA INTERNET

A esmagadora maioria das crianças e adolescentes portugueses está online três a quatro horas por dia e, quando não está, muitas vezes sente-se aborrecido por isso

                 
Relacionam-se online com pessoas que não conhecem na vida real
e mais de metade encontrou-se com esses «estranhos» cara a cara.
 E gostou. Para falar destes e de outros resultados do mais recente
estudo da rede EU Kids Online, entrevistámos a responsável
portuguesa pelo mesmo, Cristina Ponte, investigadora e professora
universitária do Departamento de Ciências da Comunicação da
 Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, da Universidade Nova
de Lisboa. 

Como é a relação das crianças e adolescentes com a internet,
 nas palavras dos próprios?

 Responder a esta pergunta (e a muitas outras que cabem nesta) é
o objetivo da Rede EU Kids Online que, para isso, e para perceber
a evolução, faz estudos periodicamente, desde 2010, em diversos
 países da União Europeia. Portugal participou em 2010, 2014 e 2018.
 Os resultados nacionais do último já estão disponíveis, os europeus
 (o estudo está a ser realizado em 19 países) serão divulgados no
 final do ano.

Na Conferência “Crianças e Jovens
 Portugueses no Contexto Digital”, será apresentado o mais recente
estudo nacional da rede EU Kids Online, que teve a sua primeira
edição em 2010.

Quais são as grandes diferenças?Em 2010, o panorama era
Marcado pelos computadores, os smartphones eram raros. O objetivo
do estudo europeu – em 25 países, entre eles Portugal – era perceber
 riscos do uso da internet pelas crianças – pornografia, sexting,
bullying e encontros com estranhos que conheceram online –, qual
 era a sua dimensão e como é que elas os reportavam.

Esse estudo levou a conclusões importantes, por exemplo, que os
riscos nem sempre levam a situações que as crianças consideram
 danosas. Conhecer pessoas novas na internet era visto como uma
 oportunidade e não como um risco. O ciberbullying era o que mais
incomodava e a pornografia era reportada pelos mais novos como
 perturbadora.
O estudo teve um grande impacto e inclusive influenciou políticas
 europeias no sentido de não olhar só para os riscos, mas também
 para as oportunidades, porque as duas coisas são indissociáveis –
quanto mais se usa, mais riscos se corre, mas também mais
oportunidades são criadas.

87% das crianças e jovens deste estudo usam o smartphone todos
 os dias ou quase para aceder à internet.

E em 2018, que mudanças verificaram?A primeira grande mudança
é a maneira como se acede à internet, que passou a fazer-se de
 forma esmagadora através do smartphone, o que permite um uso
 frequente, todos os dias, a toda a hora. 87% das crianças e jovens
deste estudo usam-no todos os dias ou quase para aceder à internet,
ou seja o acesso passou a ser muito mais instantâneo.

É como se o smartphone fosse uma extensão do próprio corpo.Sim.
E estão constantemente a receber informação, o que torna mais difícil
a vigilância ou o acompanhamento dos pais. O tablet, que também é
um meio novo, tem importância entre os mais novos, mas rapidamente
 a perde na pré-adolescência e na adolescência.

Portanto, o smartphone tornou-se hegemónico e isto reflete-se nas
 atividades online, verificando-se uma intensificação de tudo
 relativamente a 2010.

Dizem passar cerca de três (os mais novos) a quatro horas
(os mais velhos) online por dia e, nesse tempo, ouvem música,
veem vídeos (cerca de 80%) e comunicam com amigos e familiares
 e estão nas redes sociais (cerca de 75 %).

Procurar notícias, que ficou em oitavo lugar entre as atividades
 realizadas online, subiu muito relativamente aos estudos anteriores
e isso deve-se claramente ao acesso mais simples (através de
 smartphone e das aplicações, é muito mais fácil e intuitivo).

Também as próprias crianças e adolescentes vivem hoje em lares
 com muito mais tecnologia. E os pais também estão sempre
agarrados ao telemóvel, nas redes sociais, etc… Em 2010 e em
 2014, não havia esta dimensão tão intensa do digital.

Um pouco mais de metade dos jovens portugueses afirmam que é fácil verificar se a informação que encontram online é verdadeira. Não estarão a ser otimistas?

O uso mais intenso leva a que crianças e adolescentes estejam
mais preparados para gerir a utilização que fazem da internet e das
 redes sociais, vão ganhando literacia digital, ou pelo contrário estão
 mais expostos aos riscos?

Eles acham que sabem (os resultados
deste estudo baseiam-se num inquérito a crianças e adolescentes,
dos 9 aos 17 anos, portanto trata-se da opinião deles).
O interessante será que todos – os próprios jovens, os pais, os
professores… – olhem para estes números e tentem perceber até
que ponto espelham a realidade.

Por exemplo, eles dizem que é muito fácil escolher as palavras
chave para fazer pesquisas na internet mas não estarão a ser muito
 otimistas? Assim como quando dizem – pouco mais de metade –
 que é fácil verificar se a informação que encontram online é
verdadeira
São, portanto, dados para ler com cautela?São sobretudo um
 ponto de partida para refletir e eventualmente mudar as práticas
 familiares neste campo. Uma das coisas de que as crianças e os
 jovens se queixam – e a grande maioria afirma que os ambientes
 familiares são bons – é de que são pouco ouvidos pela família.

Se calhar, este pode ser um ponto de partida para uma conversa
sobre a internet em que a família discuta estas questões. As
competências informacionais (saber distinguir credibilidade da
 informação, dentro e fora da internet) são as que colocam mais
 abaixo e são tão importantes para lidarem com a avalanche de
 informação. Os pais (e a escola também) podem ajudá-los nisto.

[O aumento da exposição a conteúdos negativos] não significa
que eles os procurem. Muitos referem que imagens reais de
grande violência contra os mais fracos (crianças, pessoas com
 deficiência, animais) ou conteúdos que discriminam pessoas
 pela cor da pele ou orientação sexual os incomodam muito.

Em relação a 2014, a exposição a conteúdos desadequados
cresceu exponencialmente: sites com mensagens sobre formas
 de automutilação (de 6% para 45%); com conteúdos
 discriminatórios (de 8% para 43%); com informação sobre formas
 de cometer suicídio(de 3% para 29%), entre outros.

 Isto é sintoma de quê? Comparando
 com os outros resultados do estudo, diria que são dados
preocupantes em que sentido?Esses valores elevados ilustram a
diversidade de conteúdos negativos que circulam na internet,
 muitos
 deles estão ligados ao extremismo e discurso de ódio que têm
vindo a crescer tirando partido das redes e das conexões digitais,
onde tudo está ligado.

Não quer dizer que todos os jovens os procuram deliberadamente,
por exemplo muitos referem que imagens reais de grande violência
 contra os mais fracos (crianças, pessoas com deficiência, animais) ou
 conteúdos que discriminam pessoas pela cor da pele ou orientação
 sexual os incomodam muito.

Os valores elevados destes conteúdos negativos são um alerta
para que estes temas sejam também mais conversados e que os
 jovens sejam mais ouvidos sobre a sua experiência digital, e como
 conseguem construir a sua resiliência a esses conteúdos negativos e
 mesmo gerar outros discursos.

A campanha recente do Conselho da Europa contra o Discurso de
 Ódio, que também decorreu em Portugal, assentava precisamente
no protagonismo dos jovens como agentes de intervenção.

São as tais competências sociais, informacionais e criativas assentes
em direitos humanos que temos também de trabalhar cada vez mais,
em casa, na escola, nos espaços informais, com eles e escutando-os
também mais.
Eles gostam de estar face a face, muitas vezes não têm é
 oportunidade para o fazer, a escola é onde estão mais.

Vários estudos nos últimos tempos têm alertado para o risco de
 este uso intensivo da internet e da comunicação virtual ou mediada
levar a uma diminuição da capacidade de desenvolver empatia.Essa
é outra questão importante e tem que ver com as competências
sociais que devem ser trabalhadas em relação ao digital. Neste
estudo, notámos que eles gostam mais do contacto face a face e
dizem que as suas relações com os amigos são mais face a face
do que virtuais – o que contraria a ideia de uma maioria de contactos
 mediados.

Eles gostam de estar face a face, muitas vezes não têm é
oportunidade para o fazer, a escola é onde estão mais. Temos feito
 outros estudos de natureza mais qualitativa e, em relação às
 questões do comportamento, nas tais competências sociais para
 o digital que devem ser trabalhadas, a empatia é fundamental, o
ser capaz de se colocar no lugar do outro.

Para lidar com a agressão, como o ciberbullying há programas
 que recorrem a atividades de role play, um faz de vítima, outro faz
de agressor, outro faz de testemunha, para perceber com se sente
quando está nessa posição, mesmo que na vida real nunca
tenha passado por isso. Uma das conclusões que identificámos
logo em 2010 foi que muitos dos que são vítimas de ciberbullying
também são (ou tornam-se) agressores. É preciso trabalhar muitas
competências – informacionais, sociais, criativas e para isso temos
que desconstruir o mito dos nativos digitais.

Muitas crianças afirmam que gostariam que os pais acompanhassem
 mais o que elas fazem.
Desconstruir o mito dos nativos digitais? Não o são?Não, não são
 nem nativos digitais nem são ignorantes digitais, nem nascem
ensinados e sabem tudo da internet e das novas tecnologias nem
 são uns coitadinhos desprotegidos num ambiente que só tem riscos.

Eles têm o direito a viver com os recursos do seu tempo e nós, pais,
 educadores, sociedade, temos o dever de trabalhar com eles
competências que desenvolvam literacias digitais: não só a
 tecnológica, que essa até dominam com facilidade, mas as
competências sociais, emocionais, a capacidade de perceber o ponto
de vista do outro e como reagirá, a capacidade de criar, mas também
 conseguir lidar com as críticas, positivas ou negativas, e com a
 frustração que vem daí, porque isso faz parte da vida, o ter a noção
 de até onde se quer expor, porque não somos obrigados a expor
toda a nossa vida online.

Ou seja, há um conjunto de competências sociais muito importantes
 para tirar partido dos recursos do digital, que são imensos. Muitas
 crianças gostariam que os pais acompanhassem mais o que elas
 fazem.
O sharenting [partilha, pelos pais, de fotos ou informações sobre os
filhos nas redes sociais] é um risco sobre o qual questionaram
 pela primeira vez crianças e adolescentes e eles revelaram-se
incomodados, não foi?Quisemos perceber como é que uma
 prática
cada vez mais corrente – a de os pais exporem nas redes sociais
 a
 vida familiar sem autorização das crianças e dos adolescentes –
 vai contra o direito que estes têm à sua privacidade e a serem
 ouvidos nessa opção.

Metade daqueles cujos pais publicaram coisas sobre eles
 (comentários, fotografias, vídeos) sem o seu consentimento
 ficaram
 aborrecidos com isso e pediram aos pais para eles tirarem
esses
 conteúdos. Alguns chegaram a receber comentários negativos
 ou
 ofensivos de colegas por causa de coisas publicadas pelos
 pais sobre eles.

Mais uma questão para pôr os pais a pensar?Sim.
Os pais devem pensar que isto fica para sempre e que não é
só o ciclo de amigos que vai ver. Pensar antes de publicar. E
depois envolver a criança ou adolescente para saber se se
importa ou não. É uma questão de direitos.

Essa é uma questão que queremos relevar: o direito a viver
este espaço digital com a garantia da proteção, do acesso e
da participação. Eles têm direito a participar e a definir como é
que os outros lhes fazem referência.

É uma questão de direitos das crianças?

Sim, esta questão dos direitos digitais das crianças tem vindo a ser
destacada pela UNICEF. Na continuação do nosso trabalho na rede
 EU Kids Online, a UNICEF criou e apoia a rede Global Kids Online e
 que assenta nesta perspetiva dos direitos digitais das crianças: o
direito a ter proteção – existirem ambientes adequados, que tenham
botões onde possam reportar abuso, por exemplo –, o direito a
conteúdos adequados à sua idade e o direito a participar, a ter voz.

Estes são os Direitos da Convenção: proteção, provisão, participação.
 Como se garantem estes direitos? Com o empenho da indústria, dos
 responsáveis por políticas de inclusão, para que as crianças também
 possam ter mais literacia digital.

As crianças passam demasiado tempo nos ecrãs, e os pais? As
 crianças sentem-se aborrecidas quando não estão ligadas. E os pais?
 É preciso desconstruir a ideia de que as crianças vivem num mundo
 que não tem nada que ver com o dos adultos.

Mas para isso seria preciso que os adultos, pais e professores,
também tivessem literacia (muitas vezes não têm)?Sim. Por isso
é que estamos a fazer o lançamento deste estudo. Gostaríamos
que servisse para pôr as pessoas a pensar. As crianças dão-nos este
retrato. Por exemplo, as questões do tempo: as crianças passam
demasiado tempo nos ecrãs, e os pais? As crianças sentem-se
aborrecidas quando não estão ligadas. E os pais? Ou seja,
desconstruir essa ideia de que as crianças vivem num mundo que
não tem nada que ver com o mundo dos adultos.

Hoje, nos países desenvolvidos não há ninguém que não tenha um
 telemóvel e não esteja sempre a olhar para ele. Se calhar, é tempo
 de refletir sobre como estamos a educar os nossos filhos.

As raparigas passam mais à ação do que os rapazes quando se
sentem incomodadas. Isto deve-se a uma maior maturidade ou a
 uma vigilância por parte dos pais que é maior em relação a elas
do que a eles?Há diferenças de géneros curiosas. Elas dão sempre
 respostas mais baixas do que eles no reconhecimento das suas
 competências. Eles são mais confiantes. Mas depois, quando
 vamos ver o que fazem em situação de risco, elas agem mais do
que eles, reportando o problema ou bloqueando a pessoa.

Pode ser porque estão mais expostas a situações de incómodo,
 mas também é verdade que, de acordo com o estudo, elas falam
 mais com os pais e os pais preocupam-se mais com a mediação
 das filhas do que dos filhos. Será que a maneira como acompanho
a atividade do meu filho rapaz é diferente, deixo-o mais à vontade?

 É uma pergunta que os pais podem fazer-se.
Uma das maiores preocupações dos pais é a exposição a conteúdos
 sexuais. Aumentou a exposição e aumentaram, sobretudo rapazes,
os que dizem não se importar ou até gostar. Quais são os maiores
 riscos?Neste estudo introduzimos uma nova pergunta: o que sentiram
 nas situações consideradas de risco? O bullying é a situação que
 mais incomoda.

Mas quando vamos para as imagens sexuais, que é uma coisa
que os adultos em Portugal têm muita dificuldade em aceitar que os
 filhos vejam, o que encontramos é um número muito alto dos que
ficaram contentes, sobretudo entre os rapazes adolescentes.
Faz parte da exploração da sexualidade e muitas vezes não têm
outro espaço para a ter. Isto desconstrói a ideia de que os jovens
 ficam muito incomodados ao ver imagens de sexo. Contudo, os
pequeninos dizem ficar incomodados e é preciso os tais mecanismos
 de proteção.

E os encontros com pessoas que só conheciam online – também
 cresceram. Isto apesar das campanhas feitas, dos avisos dos pais,
das aulas de cidadania…As campanhas têm também de ouvir os
 jovens para terem como base a sua experiência.
O que vemos é que
 esses encontros cara a cara com pessoas que conheceram na
internet são na esmagadora maioria com «amigos de amigos», com
pessoas com quem partilham interesses e daí quase oitenta por cento
nos dizer que ficaram contentes com esses encontros. Como os
 pais também faziam na sua adolescência, com a criação de novos
 amigos.

Não quer dizer que não se deva falar dos perigos de falsas
 identidades, mas em vez do «não vás» certificar que o jovem
está capacitado para lidar com a situação e que sabe que tem a
 confiança dos pais, não precisando de lhes mentir. Um ambiente de
mais comunicação familiar é também o que este estudo aponta como
desejo dos mais novos.

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